24 de abril de 2016

Viver o luto de quem não veio



Eu e Isaac temos quase três anos de casados. Nos unimos no dia 29 de junho de 2013. Nos casamos com apenas 22 anos, algo que para alguns sempre foi muito precipitado. Por uma decisão tomada com muita consciência e juntos decidimos passar a utilizar o método Billings para espaçar os filhos no final do ano de 2015. O método que alguns até hoje chamam de tabelinha e também acham que é loucura funciona muito bem, viu? Contanto que você siga as regras básicas, logicamente!


Eu e Isaac acabamos não seguindo essas “regras básicas” e já podem imaginar o que aconteceu, né? Engravidamos. Foi no final de janeiro e não foi planejado. Não descobrimos de imediato, mas, assim que nos encontramos com um casal que temos como orientadores nossos, eles nos alertaram sobre a possibilidade. Os testes só comprovaram as suspeitas. Fiquei assustadíssima, mas depois é claro que a alegria tomou conta de mim. Isaac, desde que soube, já ficou radiante.


No dia 10 de março, meu aniversário, fizemos a primeira ecografia. Já estava com sete semanas e alguns dias. Ouvimos o coração do nosso bebê pela primeira e única vez. Ganhei as primeiras meinhas dele e o primeiro body. Estava acostumadíssima com a ideia e feliz. De uma maneira que não dá para explicar.


No dia 23 de março, no trabalho, fui ao banheiro no final do dia para poder ir embora. Observei que estava com um sangramento de alguma importância. Saí do banheiro, não falei nada a ninguém. Saí da sala e liguei para meu marido. Tentei ser sóbria, demonstrar pouca preocupação, mas por dentro meu coração palpitava.


Em pouco tempo Isaac estava à porta do prédio me esperando. Entrei no carro e não aguentei. Comecei a chorar. Chegando ao hospital esperei por algum tempo para ser atendida. Mesmo explicando a situação, não houve tratamento especial. Acho que já sabiam, mas não importava que eu e Isaac não soubéssemos. Fui atendida, o médico me fez inúmeras perguntas, começou a falar sobre como era normal sofrer aborto nos primeiros meses e pediu que fizesse alguns exames.


Fomos ao laboratório e fizemos os exames. O resultado demorou tanto que pensamos ou tentamos nos convencer de que não seria nada. O médico olhou os exames, disse que parecia estar tudo normal já que não sentia dores e o hormônio próprio da gravidez estava em níveis bons. Ele me mandou ir para casa e voltar no outro dia para refazer os exames.


Na quinta-feira cedo estávamos lá no hospital novamente. Fizemos o que nos foi recomendado. A médica, que não era ginecologista, viu os resultados e como quem já sabe o que aconteceu falou que aguardássemos que ia falar com a ginecologista de plantão. Plantão, pois em Brasília parece que tudo para mesmo dias antes do feriado, que no caso só seria na sexta.


Ela voltou. Nos falou sobre como era comum abortar nos primeiros meses, mas que precisava fazer uma ecografia já que não havia sangrado mais. Fui fazer o exame. Chegando lá o radiologista não podia me atender, pois tinha pacientes agendados esperando e se me atendesse não conseguiria sair ao meio-dia e curtir seu feriado antecipado. A médica precisou procurar alguém para me fazer o exame. Encontrou uma boa alma. Ou deveria dizer um profissional sem horário para ir embora.


Me deitei e o exame começou. No rosto do Isaac via uma grande apreensão. O radiologista perguntou:


– A primeira gravidez?


Eu já não tinha voz por mais que tentasse. Isaac respondeu:


-Sim.


Seguiram mais perguntas até a crucial:


– Na última ecografia ouviram o coração?


Isaac respondeu já abandonando seu lugar inicial:


– Sim, por quê?


O radiologista respondeu sem cerimônia:


– Não tem mais atividade cardíaca.


Nunca mais esquecerei a expressão do Isaac. Saímos da sala sérios, mas sem acreditar. Sentei na sala de espera e chorei como uma criança. Depois disso ainda precisávamos passar pela ginecologista, mas ao chegar ao consultório ela não estava lá. Já era meio-dia e pouco e ela não podia nos aguardar. Afinal, era véspera de feriado.


Voltamos à primeira médica para receber orientações depois que Isaac teve um acesso de desespero. Chegando lá tinham mais duas médicas na sala. Nos sentamos e a moça começou a falar sem mandar as outras saírem, já que pelo menos para nós era um momento difícil. As duas ficaram lá e chamaram mais um colega. Enquanto ouvíamos mais um vez a história do quanto é normal abortar nos primeiros meses e Isaac questionava o resultado do exame como quem não queria acreditar. As médicas mexiam no celular, conversavam, riam e falavam de outro colega de trabalho. Nunca mais esquecerei aqueles rostos. Todos imunes à nossa dor.


O que mais ouvi foi que era totalmente normal, que teria outros filhos. Para mim Deus cria cada criatura com uma alma própria. Por mais que venham outros filhos, aquele que perdi nunca será substituído.


Além do momento, da dor, da falta de aceitação, ainda me causava mais estranhamento o fato de não lembrar de mulheres me contando que perderam seus filhos. Dias mais tarde quando os amigos e conhecidos começaram a saber da notícia ouvi inúmeros relatos de mulheres que perderam seu primeiro filho.


Jornalistas, como eu, advogadas, professoras, donas de casa. Todo tipo de mulher, com todo tipo de trabalho e situações. Como não conhecia essas histórias tão próximas?


As mulheres não falam sobre isso. Talvez porque não querem reviver a dor ou por acreditar que a banalidade com que alguns profissionais tratam isso seja realmente o normal. Que realmente seja banal. Não é. Se soubesse que isso acontecia com tantas mulheres sei que minha dor não seria menor, mas não teria me culpado tanto. Me fiz tantas perguntas, me culpei por cada estresse, cada peso que carreguei mesmo por segundos, por cada trabalho que fiz.


Hoje já entendi apesar de ainda estar extremamente triste. Cada vez que vou tomar banho choro muito porque depois de tudo ainda sangramos por dias até que o corpo esteja totalmente limpo. E também tenho medo. Medo de engravidar de novo. De voltar ao trabalho. De ter que responder perguntas. Mas vou superar tudo. Vou ter outros filhos. E por mais que alguns achem incômodo, que achem que estou exagerando afinal só eram dois meses, vou contar essa história para que algumas poucas mulheres saibam que essa realidade existe. E entendam que merecem ser bem tratadas, de modo mais humanizado, seja num hospital público ou particular.




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